1985.
Era bonita. Não do tipo de beleza que nos é imposto pela televisão
e cinema. reproduzindo padrões nórdicos tão distantes do nosso caboclismo.
Cabelos negros, lábios grossos, olhos amendoados e um sorriso eterno. Ele foi o
culpado por nossa aproximação, se é que houve culpa. Seria impossível resistir
àquele sorriso.
Mesmo do alto do palco aonde tocávamos o contato de olhos e
sorrisos nos aproximou e durante toda anoite eu tocava e cantava só para ela,
ignorando o que acontecia naquele barulhento bar do Bexiga.
- Você conhece tudo de música latino-americana, deu prá notar que
você cantava junto com a gente.
- Vocês tocam muito bem, contagiam quando cantam.
- O grupo está junto á muito tempo. Muita história, muita estrada.
Era como se nos conhecêssemos desde
pequenos, tínhamos lido os mesmos livros, assistidos os mesmos
filmes, cantávamos as mesmas músicas e lutávamos pela mesma causa. Foi difícil
voltar para o palco ao terminar o intervalo, a vontade era falar e ouvir mais.
Por muitas sextas e sábados, dias em que nos apresentávamos no
barzinho, o ritual continuou. Cerveja e conversa contínua, dissertamos sobre
Marx, Engel, Milton e Tom. Rebuscamos Rosa de Luxemburgo, Mao, Taiguara e
Violeta Parra. Revisitamos Lenin, Stalin, Victor Jarra e Yupanqui.
Um disco recente de Mercedes Sosa motivou o convite:
- Aparece em casa no domingo à tarde, quem sabe não encontra
alguma música que vocês possam incluir na apresentação?
- Por mim tudo bem, anota aí o endereço. Podemos pegar um
cineminha depois.
- Feito, te espero.Só não liga para o meu pai. É meio ranzinza, de poucas palavras. Não gosta de falar muito nem de receber visitas.
A manhã de domingo me pareceu inexplicavelmente lenta, o trânsito
incrivelmente complicado, o carro estranhamente preguiçoso. Chego na Moóca
procurando o prédio na rua silenciosa e limpa. O porteiro me encarou firme,
talvez desgostando do meu cabelo preso com uma fita de couro.
- Pois não, pode falar!
- Boa tarde, eu vou no 31.
- Falar com quem?
- Eu não vim falar, eu só vim ouvir uns discos...
- Como?
- Deixa para lá, Eliete, o nome é Eliete, diga que o Rui á chegou.
O interfone barulhento me anunciou autorizando a entrada. O
elevador se abriu e me engoliu. Aquele útero metálico e barulhento se arrastou
pelas paredes cheirando a desinfetante. Um menino entrou no primeiro andar me
inquirindo do alto dos seus prováveis cinco anos. Minha mãe parecia ter razão
sobre meu cabelo, estava muito comprido.
A abertura da porta me despertou dos pensamentos vazio me fazendo
descer ao lado do número procurado. Aquela sensação que sempre nos deixa
inseguros ao apertar a campainha de uma casa que nos recebe pela primeira vez
me invadiu. Um olho piscou na lente intrometida da porta.
- Entra Rui, estava demorando, se perdeu?
- É que eu estava enxugando a louça do almoço...disse querendo fazer piada.
- Não brinca, esta aqui é minha maninha e esta gracinha é a minha
mãe.
- Muito prazer, murmurei.
- É você o responsável por estas saídas
misteriosas da Eliete, sorriu a mãe.
- Sábado eu vou também! entusiasmou-se a irmã.
- Vai aonde? Posso saber? inquiriu um vulto vindo do quarto com
voz grave. Veio caminhando lentamente ou assim me pareceu, saindo aos poucos da
sombra do corredor e se mostrando na sala.
- É papai!
- Mas...
-Você?...não pode ser!
Ao vê-lo tentei reagir mas não pude. A voz, o
rosto, aquele olhar...
1975.
O governo Geisel convive, durante o ano de 1975, com problemas no balanço de
pagamentos e dificuldades para conduzir a distensão política pretendida.A linha
dura considera os resultados favoráveis à oposição nas eleições parlamentares
de 1974 como uma ameaça ao regime militar e aumenta a truculência. O governo
reage, no campo político, alternando medidas liberalizantes com outras
repressivas, que buscavam contentar os militares. Em janeiro o governo
suspende, sem alarde, a censura prévia ao jornal O Estado de São Paulo. Quase
ao mesmo tempo, o ministro da Justiça, Armando Falcão, anuncia em rede de rádio
e TV o desmantelamento de gráficas comunistas. Em abril, a Câmara dos Deputados
rejeita, por 192 votos contra 136,
a convocação do ministro para prestar esclarecimentos
sobre o desaparecimento de presos políticos.No final de outubro, o jornalista
Vladimir Herzog, intimado a depor no DOI-Codi de São Paulo, é encontrado morto
em sua cela. O laudo pericial atesta suicídio, mas não convence a opinião
pública. Exigindo a apuração dos fatos, 8 mil pessoas comparecem a um ato
ecumênico promovido pelo arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, no
primeiro grande protesto contra a ditadura desde o AI-5. A morte de Herzog acirra os
conflitos entre a linha dura do regime e o governo Geisel. Também deixa mais
claro o alinhamento da Igreja Católica com a oposição ao regime. A dívida
externa torna-se um problema da agenda nacional 1975, por fim, é o ano em que Luís Inácio da
Silva, o Lula, é eleito para a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São
Bernardo, iniciando o que será, anos depois, um novo tipo de sindicalismo, que
se desenvolvera como oposição às direções oficiais estabelecidas nas entidades
sindicais durante todo o período pós-64.
Geralmente eles nos procuravam na igreja ou no campus
universitário. Na igreja pelas implicações que o nosso pequenos mas ativo Grupo
de Jovens possuía com o movimento de resistência à ditadura. No
Campus pela participação no Movimento Estudantil que procurava a necessária
aliança com o operariado no momento mais cruel da história do país.
A intimação para comparecer, a obrigatoriedade de prestar
depoimento tornava tenso cada movimento em direção ao prédio bonito de tijolos
vermelhos entre a Estação da Luz e a Rodoviária. No caminho me arrependi de não
ter avisado ninguém da família, só os amigos e companheiros do grupo sabiam
aonde eu iria. Achei desnecessário aumentar as preocupações do pessoal de casa
já martirizados com as idéias subversivas do caçula. Agora o nervosismo me
fazia desejar que todos estivessem ali.
Um policial educado e irônico me atendeu indicando um lugar no
banco que ficava no corredor. Algumas pessoas esperavam, todas caladas. Meu
relógio congelou o tempo, cada minuto se arrastava aumentando a tensão que
tornava o ar sufocante. Contei os lustres do teto, os azulejos, as lajotas, o
número de pessoas, inventei um nome e uma história para cada um, mas tudo
continuava parado. Ninguém era chamado, nenhum recado ou aviso era transmitido.
Ouvíamos às vezes uma sirene de carro de polícia, alguém falando mais alto em alguma
sala, uma risada perdida.
Notei uma pia no fundo do corredor e motivado pela secura da boca
me dirigi até ela. A água tinha um gosto metálico as serviu para romper a
morbidez do silêncio causado pelo imobilismo dos que aguardavam. Mal sentei no
banco a torneira já refrescava outro que também ousara romper com aquela
kafkiana condição.
Alguns minutos depois um policial de óculos escuros e grossa
corrente de outro no pescoço chamou os dois primeiros a depor. Quase uma hora
depois mais dois foram chamados e levaram um tempo maior ainda. Enquanto isso o
corredor começava a se conhecer, com os colegas de banco iniciando
um tímido diálogo.
- Só vi os carinhas entrarem, mas não vi ninguém saindo. Tem coisa
aí.
- Fica frio irmão. A saída é pelo outro lado para evitar contato.
- Pô, que fome!
- Eu queria mesmo é vomitar!
Só reparei no companheiro ao lado momentos antes de sermos
chamados a entrar. Me contou de sua vida de metalúrgico. Sua ligação com o
sindicato. Me disse que morava na Lapa e que tinha duas filhas. Ele se disse
ateu mas que a esposa e as filhas eram protestantes, carolas como você, riu baixinho.
Parecia seguro com sua calvice precoce mal disfarçada. Talvez quarenta e poucos
anos, magro e baixo. Entramos em uma sala bem iluminada em que nos
esperavam dois homens jovens que atrás de uma mesa com uma máquina de escrever
fumavam descontraídos. Sentamos e eles como autômatos iniciaram uma
série de questões indicadas em um maço de folhas mimeografadas. Além de dados
pessoais as questões tentavam fazer um levantamento das atividades que eu
supostamente exercia. Todas pareciam mal formuladas.
As perguntas, ora para mim, ora para meu colega de depoimento se
sucediam com tranqüilidade até que a porta foi aberta bruscamente.
- Tá aqui ainda o homem! Alguém gritou enquanto entrava.
Não deu nem tempo para sentir medo ou qualquer sentimento. De novo
a sensação estranha de estar participando de um filme em que não se sabia as
falas nem sua marcação.
- Caiu Geraldo, caiu! Estouramos a casa. Te entregaram meu velho!
- Vamos lá conversar um pouquinho no nosso reservado.
Entraram cinco ou seis que levantaram meu companheiro de
depoimento da cadeira em que sentava e o arrastaram entre bofetões e
deboches.
Os dois policiais que me interrogavam não se alteraram.
- Não liga não. Esse aí devia alguma coisa, mas você não deve nada não é?
Fiquei calado, não conseguia nem pensar, imagina falar.Me ajeitei
na cadeira e aguardei.
Logo me liberaram. Nunca mais soube daquele homem chamado Geraldo.
Das outras vezes em que estive por ali perguntei sobre ele e ninguém
dizia nada. Acompanhava os jornais, perguntei a um parente que era da polícia
para ver se conseguia alguma informação. Nada, ele havia desaparecido. Também
nunca mais consegui esquecer aquele rosto.
A voz, o rosto, aquele olhar...
1985.
E vez de ouvir Mercedes Sosa fiquei com o pai da Eliete
conversando e conversando. Só nós dois. Me disse que não havia esquecido aquele
dia e o nosso encontro. Foi o início do seu calvário e que por pouco não tinha
tido o mesmo fim de Herzog. Depois de horas saímos abraçados como velhos
amigos. Pediu que não contasse nada às meninas pois quase nada sua família
sabia daquele período e queria manter assim, no passado.
As encontramos surpresas com nossa conversa secreta. Eliete me
abraça e dispara:
- O que virá por ai?
E eu poetando:
- Sabe menina, às vezes É difícil não chorar!