quarta-feira, 13 de março de 2013

1975-1985 De volta ao passado.(conto)


1985.

Era bonita. Não do tipo de beleza que nos é imposto pela televisão e cinema. reproduzindo padrões nórdicos tão distantes do nosso caboclismo. Cabelos negros, lábios grossos, olhos amendoados e um sorriso eterno. Ele foi o culpado por nossa aproximação, se é que houve culpa. Seria impossível resistir àquele sorriso. 
Mesmo do alto do palco aonde tocávamos o contato de olhos e sorrisos nos aproximou e durante toda anoite eu tocava e cantava só para ela, ignorando o que acontecia naquele barulhento bar do Bexiga.
- Você conhece tudo de música latino-americana, deu prá notar que você cantava junto com a gente.
- Vocês tocam muito bem, contagiam quando cantam.
- O grupo está junto á muito tempo. Muita história, muita estrada.
Era como se nos conhecêssemos desde pequenos, tínhamos lido os mesmos livros, assistidos os mesmos filmes, cantávamos as mesmas músicas e lutávamos pela mesma causa. Foi difícil voltar para o palco ao terminar o intervalo, a vontade era falar e ouvir mais.
Por muitas sextas e sábados, dias em que nos apresentávamos no barzinho, o ritual continuou. Cerveja e conversa contínua, dissertamos sobre Marx, Engel, Milton e Tom. Rebuscamos Rosa de Luxemburgo, Mao, Taiguara e Violeta Parra. Revisitamos Lenin, Stalin, Victor Jarra e Yupanqui.
Um disco recente de Mercedes Sosa motivou o convite:
- Aparece em casa no domingo à tarde, quem sabe não encontra alguma música que vocês possam incluir na apresentação?
- Por mim tudo bem, anota aí o endereço. Podemos pegar um cineminha depois.
- Feito, te espero.Só não liga para o meu pai. É meio ranzinza, de poucas palavras. Não gosta de falar muito nem de receber visitas.

A manhã de domingo me pareceu inexplicavelmente lenta, o trânsito incrivelmente complicado, o carro estranhamente preguiçoso. Chego na Moóca procurando o prédio na rua silenciosa e limpa. O porteiro me encarou firme, talvez desgostando do meu cabelo preso com uma fita de couro.
- Pois não, pode falar!
- Boa tarde, eu vou no 31.
- Falar com quem?
- Eu não vim falar, eu só vim ouvir uns discos...
- Como?
- Deixa para lá, Eliete, o nome é Eliete, diga que o Rui á chegou.
O interfone barulhento me anunciou autorizando a entrada. O elevador se abriu e me engoliu. Aquele útero metálico e barulhento se arrastou pelas paredes cheirando a desinfetante. Um menino entrou no primeiro andar me inquirindo do alto dos seus prováveis cinco anos. Minha mãe parecia ter razão sobre meu cabelo, estava muito comprido.
A abertura da porta me despertou dos pensamentos vazio me fazendo descer ao lado do número procurado. Aquela sensação que sempre nos deixa inseguros ao apertar a campainha de uma casa que nos recebe pela primeira vez me invadiu. Um olho piscou na lente intrometida da porta.
- Entra Rui, estava demorando, se perdeu?
- É que eu estava enxugando a louça do almoço...disse querendo fazer piada.
- Não brinca, esta aqui é minha maninha e esta gracinha é a minha mãe.
- Muito prazer, murmurei.
- É você o responsável  por estas saídas misteriosas da Eliete, sorriu a mãe.
- Sábado eu vou também! entusiasmou-se a irmã.
- Vai aonde? Posso saber? inquiriu um vulto vindo do quarto com voz grave. Veio caminhando lentamente ou assim me pareceu, saindo aos poucos da sombra do corredor e se mostrando na sala.
- É papai!
- Mas...
-Você?...não pode ser!
Ao vê-lo tentei reagir mas não pude. A voz, o rosto, aquele olhar...

1975.
 
O governo Geisel convive, durante o ano de 1975, com problemas no balanço de pagamentos e dificuldades para conduzir a distensão política pretendida.A linha dura considera os resultados favoráveis à oposição nas eleições parlamentares de 1974 como uma ameaça ao regime militar e aumenta a truculência. O governo reage, no campo político, alternando medidas liberalizantes com outras repressivas, que buscavam contentar os militares. Em janeiro o governo suspende, sem alarde, a censura prévia ao jornal O Estado de São Paulo. Quase ao mesmo tempo, o ministro da Justiça, Armando Falcão, anuncia em rede de rádio e TV o desmantelamento de gráficas comunistas. Em abril, a Câmara dos Deputados rejeita, por 192 votos contra 136, a convocação do ministro para prestar esclarecimentos sobre o desaparecimento de presos políticos.No final de outubro, o jornalista Vladimir Herzog, intimado a depor no DOI-Codi de São Paulo, é encontrado morto em sua cela. O laudo pericial atesta suicídio, mas não convence a opinião pública. Exigindo a apuração dos fatos, 8 mil pessoas comparecem a um ato ecumênico promovido pelo arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, no primeiro grande protesto contra a ditadura desde o AI-5. A morte de Herzog acirra os conflitos entre a linha dura do regime e o governo Geisel. Também deixa mais claro o alinhamento da Igreja Católica com a oposição ao regime. A dívida externa torna-se um problema da agenda nacional 1975, por fim, é o ano em que Luís Inácio da Silva, o Lula, é eleito para a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, iniciando o que será, anos depois, um novo tipo de sindicalismo, que se desenvolvera como oposição às direções oficiais estabelecidas nas entidades sindicais durante todo o período pós-64.

Geralmente eles nos procuravam na igreja ou no campus universitário. Na igreja pelas implicações que o nosso pequenos mas ativo Grupo de Jovens possuía com o movimento de resistência à ditadura. No Campus pela participação no Movimento Estudantil que procurava a necessária aliança com o operariado no momento mais cruel da história do país.
A intimação para comparecer, a obrigatoriedade de prestar depoimento tornava tenso cada movimento em direção ao prédio bonito de tijolos vermelhos entre a Estação da Luz e a Rodoviária. No caminho me arrependi de não ter avisado ninguém da família, só os amigos e companheiros do grupo sabiam aonde eu iria. Achei desnecessário aumentar as preocupações do pessoal de casa já martirizados com as idéias subversivas do caçula. Agora o nervosismo me fazia desejar que todos estivessem ali.
Um policial educado e irônico me atendeu indicando um lugar no banco que ficava no corredor. Algumas pessoas esperavam, todas caladas. Meu relógio congelou o tempo, cada minuto se arrastava aumentando a tensão que tornava o ar sufocante. Contei os lustres do teto, os azulejos, as lajotas, o número de pessoas, inventei um nome e uma história para cada um, mas tudo continuava parado. Ninguém era chamado, nenhum recado ou aviso era transmitido. Ouvíamos às vezes uma sirene de carro de polícia, alguém falando mais alto em alguma sala, uma risada perdida.
Notei uma pia no fundo do corredor e motivado pela secura da boca me dirigi até ela. A água tinha um gosto metálico as serviu para romper a morbidez do silêncio causado pelo imobilismo dos que aguardavam. Mal sentei no banco a torneira já refrescava outro que também ousara romper com aquela kafkiana condição.
Alguns minutos depois um policial de óculos escuros e grossa corrente de outro no pescoço chamou os dois primeiros a depor. Quase uma hora depois mais dois foram chamados e levaram um tempo maior ainda. Enquanto isso o corredor começava a se conhecer, com os colegas de banco iniciando um tímido diálogo.
- Só vi os carinhas entrarem, mas não vi ninguém saindo. Tem coisa aí.
- Fica frio irmão. A saída é pelo outro lado para evitar contato.
- Pô, que fome!
- Eu queria mesmo é vomitar!
Só reparei no companheiro ao lado momentos antes de sermos chamados a entrar. Me contou de sua vida de metalúrgico. Sua ligação com o sindicato. Me disse que morava na Lapa e que tinha duas filhas. Ele se disse ateu mas que a esposa e as filhas eram protestantes, carolas como você, riu baixinho. Parecia seguro com sua calvice precoce mal disfarçada. Talvez quarenta e poucos anos, magro e   baixo. Entramos em uma sala bem iluminada em que nos esperavam dois homens jovens que atrás de uma mesa com uma máquina de escrever fumavam descontraídos. Sentamos e eles como autômatos iniciaram uma série de questões indicadas em um maço de folhas mimeografadas. Além de dados pessoais as questões tentavam fazer um levantamento das atividades que eu supostamente exercia. Todas pareciam mal formuladas.
As perguntas, ora para mim, ora para meu colega de depoimento se sucediam com tranqüilidade até que a porta foi aberta bruscamente.
- Tá aqui ainda o homem! Alguém gritou enquanto entrava.
Não deu nem tempo para sentir medo ou qualquer sentimento. De novo a sensação estranha de estar participando de um filme em que não se sabia as falas nem sua marcação.
- Caiu Geraldo, caiu! Estouramos a casa. Te entregaram meu velho!
- Vamos lá conversar um pouquinho no nosso reservado. 
Entraram cinco ou seis que levantaram meu companheiro de depoimento da cadeira em que sentava e o arrastaram entre bofetões e deboches. 
Os dois policiais que me interrogavam não se alteraram. 
- Não liga não. Esse aí devia alguma coisa, mas você não deve nada não é?
Fiquei calado, não conseguia nem pensar, imagina falar.Me ajeitei na cadeira e aguardei.
Logo me liberaram. Nunca mais soube daquele homem chamado Geraldo.
Das outras vezes em que estive por ali perguntei sobre ele e ninguém dizia nada. Acompanhava os jornais, perguntei a um parente que era da polícia para ver se conseguia alguma informação. Nada, ele havia desaparecido. Também nunca mais consegui esquecer aquele rosto. 
 A voz, o rosto, aquele olhar...

1985.

E vez de ouvir Mercedes Sosa fiquei com o pai da Eliete conversando e conversando. Só nós dois. Me disse que não havia esquecido aquele dia e o nosso encontro. Foi o início do seu calvário e que por pouco não tinha tido o mesmo fim de Herzog. Depois de horas saímos abraçados como velhos amigos. Pediu que não contasse nada às meninas pois quase nada sua família sabia daquele período e queria manter assim, no passado.
As encontramos surpresas com nossa conversa secreta. Eliete me abraça e dispara:
- O que virá por ai?
E eu poetando:
- Sabe menina, às vezes É difícil não chorar!



sábado, 9 de março de 2013

Mágica Ilusão

Banda Mágica Ilusão

Fascismo (I) (Ensaio)


“All I have is a voice
To undo the unfolded lie”
W.H. Auden

Algumas palavras viram tabu nos dias de hoje. 
 Rob Riemen em seu livro, o Eterno Retorno do Fascismo cita a palavra “problema” como tal para os americanos. Preferem “desafio” para a situação que antes merecia ser chamada de “problema”. É o fenômeno da negação, como se negando as palavras se mudariam os fatos. Percebe-se que em muitos lugares a palavra “fascismo” também é tabu. 
Nos movimentos políticos atuais existe a extrema-direita, o conservadorismo radical, o populismo, mas nada de fascismo. Vivemos em democracia e seria ofensa dizer que existe o fascismo.
Vocês devem se lembrar de Albert Camus em seu livro “ A Peste”.  Naquela alegoria do fascismo tudo começa com um médico se deparando com um rato morto no patamar. No dia seguinte mais ratos mortos que se sucedem. A eles advêm doentes com os mesmos sintomas de inchaços, erupções cutâneas e delírio que se traduzirão em morte em quarenta e oito horas.
Todos sabem que se trata de uma epidemia, mas enquanto for possível será negada a verdade pois não há mais disso por aqui.
Quando tudo se resolve, enquanto a multidão eufórica comemorava, o médico não compactua com a declaração oficial. Ele sabe que o bacilo da peste não morre nem desparece nunca. Pode ficar dormente por anos, mas chegará o dia em que para desgraça dos homens a peste acordará seus ratos.
Conclui-se que o bacilo fascista estará sempre presente no corpo da democracia de massas.  Se nos importa combater esta peste, primeiro temos que admitir que nossa sociedade está contaminada e chamá-lo pelo seu nome: fascismo!
Não se pode esconder a cabeça na areia, não se pode negar o problema, é preciso se lembrar que aquele que não aprende com a história está condenado a vê-la repetir-se. 
O fascismo desemboca no despotismo e na violência.
 O prenúncio é a regra substituindo o diálogo. O membro da equipe se torna apenas um servidor do déspota.  Em nome da eficiência se penaliza e se institui o terror.
Lentamente a espinha se dobra.
O homem-massa está na sala de espera a apontar o dedo e exigir atenção.

ACIDENTE NO MOTEL (mini-conto)

Ele havia procurado por muito tempo um motel discreto e distante, afinal não poderia dar bandeira com noiva prendada e caseira, quase personagem de Nelson Rodrigues. Com ela não havia avanço de sinal apesar do novo século inaugurado há  pouco. Eram beijinhos, carícias, mãozinha prá cá, mãozinha prá lá, mas na hora do bem bom...
Tinha suas amigas aqui, acolá e preferencialmente bem depois do acolá. O motel sempre distante, entrada discretíssima, sem luminosos tradicionais, árvores camuflando a entrada...quase um convento. Era perfeito para quem  precisava manter uma imagem ascética como a dele. 
Ou melhor... o motel era quase perfeito, a ausência de garagem coberta e fechada era o único defeito. No início desconfiara em deixar o carro exposto mas com o tempo observou que as placas dos carros eram de cidades distantes, afinal estava a mais de oitenta quilômetros de casa. Esta mania não perderia jamais. Conferir placas dos carros que se enfileiravam ao lado dos chalés.
Naquela tarde de terça-feira saiu com sua loira amiga do quarto do motel meio apressado, se perdera no horário e tinha que visitar um cliente antes das cinco da tarde. A pressa fez com que colidisse levemente com o carro estacionado à porta do chalé vizinho. Uma batida leve mas suficiente para amassar o frágil para-choque do bonito carro que lhe pareceu familiar. A mania de conferir as placas dos carros estacionados o fez sorrir. Ele conhecia aquela carro!
Desceu e olhou pelo vidro dianteiro. Sim! Era o carro do seu amigo mais chegado. Tranquilo com a descoberta saiu feliz por encontrar mais um companheiro de aventuras.
No dia seguinte, com um sorriso safado no canto da boca, perguntou ao amigo:
- Cadê teu carro?
- Está na oficina consertando um amassadinho.
- Ah! ...sei...sei. E como foi este amassadinho, ou melhor aonde foi que isto aconteceu? disse irônico.
- Não sei aonde foi. O carro estava com minha mulher. Ontem à tarde ela foi visitar umas amigas e você sabe como é que é mulher na direção.
Empalideceu e se retirou rapidamente enquanto pensava se contava ou não o que havia acontecido.
 Decidiu não contar nada.
Decidiu mais ainda, romper o noivado e nunca se casar.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Tele-Encontro (mini-conto)

Foi quando ele estacionou em frente à lancheria para tomar o seu aperitivo das seis da tarde que notou no banco de trás do automóvel aquela revista.
Uma dessas revistas de capa carnavalesca com astros e estrelas televisivos. Pegou aquilo com desdém e levou para sua mesa favorita, discreta e com perfeita visibilidade do calçadão. 
Sua mulher tinha verdadeira mania por esse tipo de "literatura". Ele desprezava, evitava até tocar.
Agora, folheava as páginas coloridas enquanto sorvia seu aperitivo lentamente. Um imenso anúncio mostrava as delícias de um tal de tele-encontro. Você dava seu perfil e o que desejava em termos de companhia, para uma amizade, namoro ou o que mais pintasse. Riu solto das bobagens que inventam hoje em dia mas por um instinto adquirido no trabalho diário memorizou o endereço do site.
No dia seguinte acessou do escritório alterando levemente suas características físicas e o nome, omitindo os fios de cabelo branco que já surgiam vigorosos nas têmporas, realçando a altura de um metro e oitenta e sem contar nada da barriguinha safada que arredondava a silhueta. Recebeu uma senha e alguns dias depois conseguiu o número do telefone daquela que seria a sua parceira  perfeita.  
É claro que as longas conversas ao telefone que se sucederam não o satisfazia. Precisava conhecer aquela mulher perfeita, de voz sensual e pelo que ela indicava, apetite sexual incontrolável. Combinaram de se encontrar no Shopping em Caxias, às três horas da tarde, horário que pareceu perfeito aos dois. Rindo, confessaram ao se despedir ao telefone que haviam exagerado um pouquinho nos atributos pessoais. Isso daria mais sabor ao encontro, murmurou ele, antevendo gozos homéricos. Ela iria de mini-saia preta e blusa bege, ele de jeans e camiseta branca. Tudo muito discreto. Assim se reconheceriam.
Meia hora antes ele já estava lá entre aflito e agoniado. Parecia tudo loucura na sua cabeça. A sacanagem com a esposa, a necessidade de colocar um salzinho na vida medíocre, a vontade de mais tesão do que o insosso papai com mamãe, emoções...
Na hora certa ele a avistou de longe no fim do comprido corredor sinuoso do shopping. Era ela... com sua mini-saia preta e blusa bege como havia descrito ao telefone. Conseguiu observar o sorriso nos lábios pintados, o passo decidido. Entre surpreso e apavorado se jogou dentro da loja de roupas femininas.
Era sua mulher!
Sem graça, suando frio, sem se virar um minuto, comprou um conjunto vermelho de calcinha e sutiã. Chegou em casa no horário de costume.
Encontrou a mulher rasgando suas revistas e enfiando tudo no saco de lixo.
- Não se pode confiar nessas revistas! disse ela. É só enganação!
Jantaram e ele lhe deu o presente. Ela nem reparou que havia sido comprado no Shopping de Caxias. Transaram até a manhã seguinte e nunca conversaram sobre o assunto.

Madalena Village (conto)

     Noite quente de São Paulo envolta na solidão tipica dos fins de semana em que a companhia se resume aos próprios pensamentos. Sábado sedento de chope e conversa. Dentro do carro estacionado em frente ao obelisco do Ibirapuera a luz da lua ajuda a procurar o que fazer. Os filmes assistíveis já haviam se esgotado, para teatro já era tarde, beber sozinho me fazia mal ao fígado, música... música.. algum show!
    -É isto! Sessão maldita no Lira Paulista! Começa à meia-noite, dá tempo!
    Passando pouco das onze, subia devagar pela direita na direção de Pinheiros, cruzei a 9 de Julho, a Rebouças e entrei na Henrique Schauman. O brilho dos inúmeros neons dava vida e cor aos inúmeros bares, danceterias e choperias. Naqueles dias dos anos 70 já pulsava por todos os lados o som alegre da noite paulistana, misto de rock, samba, motos e carros. Foi incrivelmente fácil encontrar uma vaga perto do pequeno teatro, o que pareceu prenúncio de boa sorte.
Onze e meia e fervia o local pela marginália noturna, figuras típicas do subterrâneo cultural da Vila Madalena. Hippies patéticos ainda discutindo o poder alucinógeno, latinos em portunhol fluente dando vivas à futura revolução, blacks pensando funk, gente bonita à procura.
Ao comprar o ingresso fiquei sabendo da dupla que se apresentava, Lé Dantas e Cordeiro. Faziam um som urbano com raízes interioranas, vindos do Paraná se não me trai a memória.  Já havia ouvido algo na TV Cultura, falavam bem. Meia hora demora muito a passar quando se está sozinho..pensei em uma cerveja para me fazer companhia mas desisti ao lembrar da fama do banheiro do Lira.
- Garçom! Uma vodka com martini doce e duas pedras de gelo.
Encarei firme o crioulo magro que estranhou o pedido. Eu também. Me pareceu sonora a combinação. Meu estomago reclamou no primeiro gole. Fui até o fim, aguardando os ponteiros se encontrarem e permitirem minha entrado no teatro.
O Lira Paulistana abriu suas portas no horário, engolindo a  fauna ávida em seus bancos duros dispostos em semicírculo, formando uma arena. Sentei na segunda fila e esperei. 
As luzes ainda estavam acesas quando aconteceu. Uma fada de olhos verdes enormes me encarava do outro lado da platéia.
Naturalmente procurei ao meu lado alguém que pudesse ser o alvo dos raios emitidos por aqueles olhos, mas os casais vizinhos estavam entretidos nos arrulhos pré-motelescos. Quando voltei a cabeça em direção fatídica, um sorriso displicente confirmava o alvo. Começou a apresentação e terminou sem que se interrompesse o jogo alternado de olhares e sorrisos.
Acenderam-se as luzes e procurei ser rápido na direção da porta. Consegui alcança-la na calçada já se despedindo de um grupo agitado.
-Oi!
-Oi!
- Bons estes caras, né? Você está com pressa?
- Pois é, estou com uma turma aí, eles vão a uma festa.
- Pensei que pudéssemos conversar...
- Vamos embora Mila...estamos atrasados...
- Preciso ir, até qualquer hora...
- Até...
Notei que a turma da tal de Mila era bem grande e pela insistência estavam com pressa mesmo. A festa deveria ser muito boa. Entrei no carro e pensei naquela gente toda entrando na festa. Um a mais ou a menos nunca seria notado.
Mila e seus amigos acabavam de passar saindo do estacionamento, eram quatro, cinco, seis carros. Engatei a primeira e decidi segui-los. De início à distância e logo depois colado ao último carro.  Poucos quarteirões foram percorridos e já procuravam espaço livre entre as árvores antigas da rua escura e silenciosa demais para uma festa com tanta gente. Esperei todos os carros se esvaziarem e saí em direção ao grupo.
- Oi de novo.
- Você por aqui?
- Incomodo?
- Não, acho que não!
Todos subiam por uma escada lateral para uma casa assobradada, embaixo uma garagem havia sido transformada em uma loja de consertos de guarda-chuvas. Na subida fui ultrapassado e perdi de novo o contato com Mila, o que se tornou desagradável ao entrar na sala.
Estava iluminada apenas por uma vela colocada em cima de uma mesa que era o único móvel. Todos sentados no chão, de costas apoiadas na parede. Poucos conversavam, a maioria tinha os olhos fixos no casal que preparava algo sobre a mesa. Esperei os olhos se acostumarem à escuridão e consegui encontrar o sorriso de Mila. Ela recebia um cigarro do rapaz que estava na mesa como se estivesse tocando algo sagrado.
Meu cérebro estalou, mau sinal. Olhei de novo para a mesa. Um montinho de erva seca,  papéis brancos, quase transparentes.
Nunca tive preconceitos quanto a hábitos, mas sempre preferi estar consciente e ver a vida como ela é e não como sonhos me pudessem fazer ver. Estou fora...pensei rápido!
- Quente aqui dentro hein!? Sorri amarelo para o japonês do lado.
- Vai esquentar mais daqui a pouco.
- Vou tomar um arzinho.
- !!!???
 Desci lentamente as escadas procurando meu carro entre as árvores. Levantei  o braço procurando o relógio e avistei várias luzes vermelhas e azuis no fim da rua.
- Polícia, alertou meu grilo falante. Estão cercando o quarteirão.
 Entrei rápido no carro e manobrei na direção contrária. Na equina diminui a velocidade e entrei na transversal no exato momento em que as viaturas chegavam e fechavam também este lado da rua. O cerco está completo.
Parei alguns metros adiante e enquanto secava o suor gelado do rosto pude avistar os gorilas armados se dirigindo em quantidade exagerada ao sobrado. Entrei no carro , liguei o rádio.
- Tente outra vez, cantava Raul Seixas.
Decidi ir prá casa.